Informa o jornalista cultural Vicente Alencar a morte da rádio atriz da Dragão do Mar, Gláuria Farias, aos 80 anos.
- Ela integrou o elenco de rádio atrizes da Rádio Dragão do Mar nos anos 1950-1960, relata o livro de Marciano Lopes - 'Coisas que o Tempo Levou - A Era do Rádio no Ceará'.
Uma crônica de Demitri Túlio, de O Povo, em 10 de fevereiro de 2003, destaca Gláuria Farias como 'A Garota do Fusca':
- Antes da radionovela da Dragão do Mar, vinha o momento político. Leitura diária da crônica ''A Nossa Palavra'', alfinetada no calo do joanete de Paulo Sarasate. Um pouco antes das 12h30, horário do almoço, a UDN, União Democrática Nacional, entrava na peia, açoite de Caipora em cachorros de caçadas. Pedrada na vidraça oficial. Era o aperitivo para o almoço de capitalistas e canelau e o entrée para o folhetim das mariazinhas. Blanchard Girão fazia a ponta do lápis, afiava. Editoriais pintados de crônicas e vaias para os pulhas do governo da aldeia. Pulhas, digo, na versão dos ditos socialistas de plantão do Partido Social Democrático, PSD.
Depois da chibata o almoço estava à mesa, posto. Era a hora do ovo com baião de dois, sardinha com arroz branco ou cozidão de carne gorda com osso e tutano. Duas batidinhas no ossobuco e a gordura se ensebava na farinha. O refresco ou garapa açucarada de limão acompanhava o dejeuner. Passada a pua política, o sentido, agora, ia para o capítulo inédito da radionovela. Folhetim água com açúcar. Melado. ''Uma mulher contra o mundo inteiro'', ''A mulher que rir'', ''Jane Eyre''...
Gláuria Farias mandava brasa. Voz de bibelô de geladeira no mundo, sedutora e derretida. No papel principal, arrancava suspiros, goles secos e libido de mexer com as coisas e as vergonhas. O beijo era descrito e gemido. Escutava-se. Se os ouvintes salivassem, enchessem a boca d'água ou cruzassem as pernas, a história tava vingando. Sucesso de audiência. Certeza de, no final dos quatro meses de novela, sentirem saudade dos personagens. Gostinho de ter acabado algo na hora que o negócio tava esquentando. Mas depois de um radiodrama sempre vinha outro, e mais outro e outro.
Fama garantida, um dia convidaram a mocinha para um comercial. Fora do rádio. A televisão engatinhava na aldeia grande e o cast da Dragão dava as cartas. Enfeitiçados com o canto das sereias, ouvintes imaginavam deuses e deusas. O rádio era lugar encantado. Pois muito bem, a beldade emprestaria ao estreante Volks, sessenta e alguma coisa, as belas pernas, o busto pontudo, os cabelos e os lábios carnudos. Perfeita, perfeito.
A garota propaganda foi à Praia do Futuro e posou em cima do capô do Volkswagen. Lançamento do fusca em Fortaleza. Pneus faixa branca, calota niquelada, estribos nas portas e alça de segurança para o passageiro não dançar no banco traseiro. Pena que até hoje não enviaram o cachê pelo uso da imagem. Calote. Saiu no jornal, mas dinheiro que é bom - necas!
Política e dramalhão caminhavam ali, pertinho. Parsifal Barroso, PSD-PTB, tinha sido eleito, em 1958, governador graças aos bombardeios da Dragão contra os udenistas. Denúncias de escândalos envolvendo apadrinhados do governo e alejos administrativas. Enquanto isso, na mesa da sala de comer, ''A mulher que rir'' tabulava um enredo. Gláuria Farias encarnava uma fulana acometida do mal da dupla personalidade. Ora santa, ora devassa. Invadia os bares e seduzia os homens. Depois, dava na fraqueza, esquecia o acontecido e penava por isso. ''Jane Eyre'', outra campeã de audiência do radioteatro, era uma pobre empregada de casa rica, lascada, mas limpinha, honesta e gostosa. Por quem o patrão se apaixonara. Pior pra ela, a noiva-bruxa do bacana, incorporada por Hiramisa Serra, infernizaria a vida dela até o fim do melodrama.
Pegava fogo o cenário político. Violento. Em um dos capítulos da vida real, enfezado com as críticas, o governo mandou prender o carro de reportagens da Dragão do Mar. Xadrez para os repórteres em um quartel no Antônio Bezerra. Fuá à vista. Perboyre e Silva, então presidente da Associação Cearense de Imprensa, liderou uma carreata de jornalistas. Saíram do Centro de Fortaleza e foram protestar contra o ato do general Severino Sombra, secretário da Segurança. Depois de bate-bocas, via ondas curtas e manifestação na Praça dos Voluntários, soltaram os homens. Ponto para a Dragão, pivô do quiprocó e popularidade em alta. Pra desespero da Assunção, Iracema e Uirapuru.
O saldo de tanta polêmica resultou na eleição de Parsifal Barroso. Feito isso, a Dragão do Mar passou às mãos de Moysés Pimentel, capitalista e democrata social. Politicamente, a emissora continuou forte e em 1962 levou Pimentel à Câmara Federal. Já Blanchard Girão e Aécio de Borba se elegeram deputados estaduais.
A radioatriz Gláuria Farias voltaria, na campanha de Moysés Pimentel, a dar uma de garota-propaganda. Subia nos palanques e percorria os comícios pelo Interior do Estado. Pedido do patrão. Nas brenhas ou cafundós, não tinha aquele que não passasse mal ao ver de perto, em carne e osso, a moça da voz do rádio. Em Morada Nova, contam, um prefeito se tremia dos pés à cabeça. Fã incondicional, quase foi à pique.
Com o golpe de 1964, a Dragão foi ocupada e fechada no primeiro dia de abril. Invadida por ordem da 10ª Região Militar, permaneceu por vários meses fora do ar. Alguns jornalistas, como Nazareno Albuquerque e Peixoto de Alencar, foram presos. O general Almir Macêdo ficou como interventor. Moysés Pimentel e Blanchard Girão foram cassados pela ditadura. Girão, por sinal, nem na rádio estava mais. Gláuria Farias e o cast da emissora, que ainda contava com Oliveira Filho e Aderbal Freire Júnior, foram demitidos.
Aos 63 anos, Gláuria Farias tem duas filhas e mora na Alameda Maria Doralice, Cidade 2000. Depois da demissão em 1964, voltou a Dragão do Mar e virou locutora de programas de variedade em 1965. Ficou por lá durante um ano. Poderia até ter seguido o caminho normal das radioatrizes da aldeia que foram fazer novela, ao vivo, na tevê. Não foi. Era tímida e encabulada demais para aparecer em carne e osso. Foi assim..."
Uma crônica de Demitri Túlio, de O Povo, em 10 de fevereiro de 2003, destaca Gláuria Farias como 'A Garota do Fusca':
- Antes da radionovela da Dragão do Mar, vinha o momento político. Leitura diária da crônica ''A Nossa Palavra'', alfinetada no calo do joanete de Paulo Sarasate. Um pouco antes das 12h30, horário do almoço, a UDN, União Democrática Nacional, entrava na peia, açoite de Caipora em cachorros de caçadas. Pedrada na vidraça oficial. Era o aperitivo para o almoço de capitalistas e canelau e o entrée para o folhetim das mariazinhas. Blanchard Girão fazia a ponta do lápis, afiava. Editoriais pintados de crônicas e vaias para os pulhas do governo da aldeia. Pulhas, digo, na versão dos ditos socialistas de plantão do Partido Social Democrático, PSD.
Depois da chibata o almoço estava à mesa, posto. Era a hora do ovo com baião de dois, sardinha com arroz branco ou cozidão de carne gorda com osso e tutano. Duas batidinhas no ossobuco e a gordura se ensebava na farinha. O refresco ou garapa açucarada de limão acompanhava o dejeuner. Passada a pua política, o sentido, agora, ia para o capítulo inédito da radionovela. Folhetim água com açúcar. Melado. ''Uma mulher contra o mundo inteiro'', ''A mulher que rir'', ''Jane Eyre''...
Gláuria Farias mandava brasa. Voz de bibelô de geladeira no mundo, sedutora e derretida. No papel principal, arrancava suspiros, goles secos e libido de mexer com as coisas e as vergonhas. O beijo era descrito e gemido. Escutava-se. Se os ouvintes salivassem, enchessem a boca d'água ou cruzassem as pernas, a história tava vingando. Sucesso de audiência. Certeza de, no final dos quatro meses de novela, sentirem saudade dos personagens. Gostinho de ter acabado algo na hora que o negócio tava esquentando. Mas depois de um radiodrama sempre vinha outro, e mais outro e outro.
Fama garantida, um dia convidaram a mocinha para um comercial. Fora do rádio. A televisão engatinhava na aldeia grande e o cast da Dragão dava as cartas. Enfeitiçados com o canto das sereias, ouvintes imaginavam deuses e deusas. O rádio era lugar encantado. Pois muito bem, a beldade emprestaria ao estreante Volks, sessenta e alguma coisa, as belas pernas, o busto pontudo, os cabelos e os lábios carnudos. Perfeita, perfeito.
A garota propaganda foi à Praia do Futuro e posou em cima do capô do Volkswagen. Lançamento do fusca em Fortaleza. Pneus faixa branca, calota niquelada, estribos nas portas e alça de segurança para o passageiro não dançar no banco traseiro. Pena que até hoje não enviaram o cachê pelo uso da imagem. Calote. Saiu no jornal, mas dinheiro que é bom - necas!
Política e dramalhão caminhavam ali, pertinho. Parsifal Barroso, PSD-PTB, tinha sido eleito, em 1958, governador graças aos bombardeios da Dragão contra os udenistas. Denúncias de escândalos envolvendo apadrinhados do governo e alejos administrativas. Enquanto isso, na mesa da sala de comer, ''A mulher que rir'' tabulava um enredo. Gláuria Farias encarnava uma fulana acometida do mal da dupla personalidade. Ora santa, ora devassa. Invadia os bares e seduzia os homens. Depois, dava na fraqueza, esquecia o acontecido e penava por isso. ''Jane Eyre'', outra campeã de audiência do radioteatro, era uma pobre empregada de casa rica, lascada, mas limpinha, honesta e gostosa. Por quem o patrão se apaixonara. Pior pra ela, a noiva-bruxa do bacana, incorporada por Hiramisa Serra, infernizaria a vida dela até o fim do melodrama.
Pegava fogo o cenário político. Violento. Em um dos capítulos da vida real, enfezado com as críticas, o governo mandou prender o carro de reportagens da Dragão do Mar. Xadrez para os repórteres em um quartel no Antônio Bezerra. Fuá à vista. Perboyre e Silva, então presidente da Associação Cearense de Imprensa, liderou uma carreata de jornalistas. Saíram do Centro de Fortaleza e foram protestar contra o ato do general Severino Sombra, secretário da Segurança. Depois de bate-bocas, via ondas curtas e manifestação na Praça dos Voluntários, soltaram os homens. Ponto para a Dragão, pivô do quiprocó e popularidade em alta. Pra desespero da Assunção, Iracema e Uirapuru.
O saldo de tanta polêmica resultou na eleição de Parsifal Barroso. Feito isso, a Dragão do Mar passou às mãos de Moysés Pimentel, capitalista e democrata social. Politicamente, a emissora continuou forte e em 1962 levou Pimentel à Câmara Federal. Já Blanchard Girão e Aécio de Borba se elegeram deputados estaduais.
A radioatriz Gláuria Farias voltaria, na campanha de Moysés Pimentel, a dar uma de garota-propaganda. Subia nos palanques e percorria os comícios pelo Interior do Estado. Pedido do patrão. Nas brenhas ou cafundós, não tinha aquele que não passasse mal ao ver de perto, em carne e osso, a moça da voz do rádio. Em Morada Nova, contam, um prefeito se tremia dos pés à cabeça. Fã incondicional, quase foi à pique.
Com o golpe de 1964, a Dragão foi ocupada e fechada no primeiro dia de abril. Invadida por ordem da 10ª Região Militar, permaneceu por vários meses fora do ar. Alguns jornalistas, como Nazareno Albuquerque e Peixoto de Alencar, foram presos. O general Almir Macêdo ficou como interventor. Moysés Pimentel e Blanchard Girão foram cassados pela ditadura. Girão, por sinal, nem na rádio estava mais. Gláuria Farias e o cast da emissora, que ainda contava com Oliveira Filho e Aderbal Freire Júnior, foram demitidos.
Aos 63 anos, Gláuria Farias tem duas filhas e mora na Alameda Maria Doralice, Cidade 2000. Depois da demissão em 1964, voltou a Dragão do Mar e virou locutora de programas de variedade em 1965. Ficou por lá durante um ano. Poderia até ter seguido o caminho normal das radioatrizes da aldeia que foram fazer novela, ao vivo, na tevê. Não foi. Era tímida e encabulada demais para aparecer em carne e osso. Foi assim..."
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